segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O SEMIDEUS DA CAATINGA

(Toni Rodrigues)

Capítulo 1

O estranho Dr. Eurico Fontana chegou ao município de São José da Caatinga no começo dos anos 1970. Era então pouco mais que um lugarejo, embora a emancipação tivesse ocorrido há mais de cinqüenta anos. Os moradores mais antigos afirmam que o médico chegou ainda como acadêmico para trabalhar na maternidade local e desde logo passou a exercer grande influência sobre a comunidade.
Eurico não era pessoa simpática e não empreendia nenhum esforço neste sentido. Fazia questão de ser grosseiro. Seus benfeitores foram os membros da família Ramalho, que o haviam contratado, mais especificamente o deputado Agnelo Ramalho, um típico político do interior. Pensava em chegar à prefeitura, porém membros da sua família haviam perdido três eleições consecutivas.
A chegada de Eurico foi providencial, porque ao tornar-se médico decidiu também ingressar na política e passou a atuar ao lado de Agnelo. Os dois chegaram juntos à prefeitura em 1978, mas romperiam pouco tempo depois. Eurico queria ser mais do que apenas vice e passou a fazer severa oposição ao prefeito, seu antigo benfeitor.
Na luta pelo seu próprio espaço, disputou a prefeitura nas eleições de 1982, mas foi derrotado por Adelfo Barradas, membro da outra oligarquia do município. Os Ramalho e os Barradas se alternavam no poder desde a emancipação e Dr. Eurico ainda levaria seis anos para chegar ao poder, mais precisamente no pleito de 1988. A partir de então tornou-se líder incontestável e imbatível.
Seus métodos eram duramente questionados pelos opositores, que também criticavam o seu jeito de tratar a população. Não escolhia cara nem idade. Era grosseiro com todos, indistintamente. Pouco afeito a convenções sociais, não dava a mínima para o que diziam sobre suas perversões sexuais. Era comum chegar acompanhado de prostitutas em ambientes familiares da cidade.
Derrotadas em duas eleições consecutivas, as tradicionais famílias de São José da Caatinga decidiram jogar a toalha. Dr. Eurico era politicamente invencível, imune a todo tipo de críticas, mesmo aquelas amparadas em decisões judiciais. Condenado em vários processos por desvio de dinheiro público e outras irregularidades, ele sempre se apresentava como vítima de perseguição dos poderosos. E o pior era que a população acreditava nele.
Ao mesmo tempo em que controlava a prefeitura como um feudo, colocando no cargo quem bem entendesse, Dr. Eurico enriquecia a olhos vistos. Montou para si uma clínica muito bem estruturada, adquiriu vários apartamentos na capital e algumas fazendas de gado na região. Acumularia, além do formidável poder político, um extraordinário capital financeiro.
O município era situado numa das áreas mais pobres do Piauí. São José da Caatinga ficava no meio do semi-árido. As chuvas eram escassas, os riachos e lagoas ficavam secos a maior parte do tempo e na maioria dos povoados o abastecimento de água era feito em carros-pipa. O subsolo era do tipo cristalino, o que impedia a perfuração de poços. Os contatos com a capital eram dificultados pelas péssimas condições das estradas.

- Que tipo de experiências? - questionou Ingrid, visivelmente perturbada com as afirmações de Josias.
- Experiências aterradoras. Não sei explicar direito, mas está tudo aqui - disse ele, entregando-lhe a pasta. - É um dossiê contendo informações preciosas sobre as atividades de Dr. Eurico Fontana.
- Por que está me entregando isso?
- Temo que algo me aconteça.
- Como assim? Algo lhe aconteça?!
- Ele sabe que tenho essas informações. Sabe que estou a par de suas marmotas. Do que tem feito com essa gente pobre e indefesa.
- Josias, estou ficando assustada.
- Peço apenas que me ajude. Se algo me acontecer, avise meu irmão e mande cópias para quem possa fazer alguma coisa.
Josias desapareceu naquela mesma noite. Ingrid foi a última pessoa que esteve com ele. Durante vários dias e semanas era impossível dizer se estava morto ou vivo.

Capítulo 2

O deputado César Rodrigues anunciou com tranqüilidade o seu licenciamento da Assembléia Legislativa para disputar a prefeitura de São José da Caatinga, terra de seus pais e avós e onde obtivera expressiva votação no pleito estadual.
- Há, naquele município, uma brutal crise de identidade - discursou. - Os que se arrogam de líderes não conseguem responder plenamente aos anseios da grande maioria do povo, que permanece pobre e sem oportunidades. Tenho convicção plena de estar preparado para corresponder ao desafio.
Os repórteres de imediato questionaram suas intenções. Achavam muito duvidoso que houvesse alguma motivação nobre na atitude do deputado. Exercia o segundo mandato, tinha uma rotina sem alterações junto ao Legislativo e a invejável remuneração de um parlamentar de situação. Trocar as mordomias do Palácio Petrônio Portella por uma prefeitura de quinta categoria só podia esconder algum propósito torpe.
O colunista Aécio Ribeiro escreveu que ele poderia estar ambicionando um passo maior. “Afinal, uma prefeitura por menor que seja, será sempre uma prefeitura”, escreveu, usando de grosseira ironia.
César foi recebido com honras de chefe de Estado em seu torrão natal. Houve foguetório, carreata e missa em ação de graças. O próprio Dr. Eurico esteve presente à celebração, antecipando o que teria pela frente.
- É verdade o que dizem? - indagou. - Será mesmo candidato?
- Estou sendo pressionado pela família e pelos eleitores.
- Não seria melhor ficar mesmo lá pela Assembléia? O nobre deputado poderia ajudar o município muito mais através da intermediação de verbas e obras do Estado e União.
- Na política, não escolhemos o nosso destino, Dr. Eurico. Somos tocados pela mão de Deus e do eleitorado. O senhor sabe muito bem disso.
- Acha mesmo que pode me derrotar? - não conseguia disfarçar o desprezo pelas intenções do jovem político.
- É o que vamos ver, doutor, é o que vamos ver.
- Vamos em frente, então.
O desafio estava lançado. César Rodrigues disputaria contra Manolo Paraúna, candidato apoiado pelo todo-poderoso Eurico Fontana.

Em suas andanças pela zona rural do município, César se depararia com uma série de situações incomuns. Reviu amigos e em alguns deles notou o envelhecimento precoce. Parecia que o sol inclemente tinha lançado sobre aquelas criaturas sertanejas um estranho sortilégio.
Foi assim com Agildo. Tomou um susto quando o encontrou na localidade Cangalha. O sujeito deveria ter mais ou menos a sua idade. Eram amigos de infância. No entanto, parecia ter sessenta anos ou mais. As faces enrugadas, os cabelos brancos, a fragilidade no caminhar.
- Veja só, deputado, o que essa maldita lavoura faz com a gente. Bom seria se estivesse por lá, na cidade grande, trabalhando no escritório com ar-refrigerado, andando em carro de luxo.

Expectativa na Câmara Municipal. Jáder faria discurso possivelmente anunciando rompimento com o prefeito.
Todos esperavam com ansiedade. Principalmente em razão do desaparecimento de Josias, irmão do vereador, que sumira depois de falar publicamente contra a clínica mantida pelo prefeito.
Experiências nefastas, ele disse antes de sumir, tenho provas. Depois disso, não se ouviu mais falar do infeliz.
A cidade tinha medo em admitir. A verdade podia ser terrível. Mais do que se podia imaginar.
Jáder adentra o prédio do Legislativo, situado em frente à praça central, onde meia dúzia de policiais já se encontravam desde as primeiras horas da manhã. O prefeito os havia convocado, alegando que era para proteger a integridade dos senhores parlamentares diante do que poderia acontecer.
Postou-se na tribuna com altivez. Julgava-se um tribuno nato, por isso optara pela política, ao contrário do irmão, que atuava como espécie de laboratorista prático. Experiências científicas, ele dizia.
- Senhores vereadores, começa Jáder Montenegro. Tenho muito a lhes dizer. Em primeiro lugar, denunciar o desaparecimento do meu irmão, Josias Montenegro, para cujo fato peço toda atenção. Meu irmão sumiu depois de conversar com várias pessoas deste município sobre experiências inconfessáveis que estariam sendo realizadas na clínica “Esperança Garcia”, de propriedade do senhor prefeito municipal. Ele disse inclusive ter provas de que essas experiências são prejudiciais ao nosso povo. De repente, ele misteriosamente desapareceu. Já enviamos expediente para autoridades estaduais e federais. Encaminhamos ofício diretamente ao governador do estado e ao ministro da Justiça, no entanto até agora não obtivemos nenhuma resposta. O que pode ter acontecido ao meu irmão? Será que ainda está vivo?
Pausa, respira fundo. Toma um gole de água e volta a falar:
- O prefeito, como todos sabem e admitem, controla esta cidade com pulso de ditador. Ele manda mais do que a polícia, do que o governo, comanda a todos como se fosse uma espécie de dono da cidade e controla a política de forma obscura... sobre isso tenho importante denúncia a fazer.
Um colega da situação pede aparte. Ele garante que dará. Mais tarde. Aguarde.
- No último pleito, quando ele disputou a reeleição, temos provas incontestáveis de uso da máquina administrativa e da compra de autoridades judiciais para fazer vista grossa ao processo de corrupção adotado na campanha. Senhoras e senhores vereadores, cidadãos aqui presentes... o prefeito comprou a reeleição com dinheiro público quando todos sabiam que ele perderia para o candidato da oposição. Estava perdido o pleito quando seus seguidores entraram em campo. Primeiro, simularam programas sociais para chamar o povo aos órgãos da prefeitura. Ali, foram distribuídos benefícios como óculos, dentaduras, telhas, tijolos, dinheiro em espécie e carradas de piçarra.
Mais um pedido de aparte. Nova negativa. Deixe-me terminar o raciocínio. Concluo e concedo o aparte.
- Não havia como se combater tamanha corrupção. O governo federal mandou dinheiro para construção de calçamento. Cerca de 22 mil metros quadrados. Foram aproximadamente 800 mil reais. Quase um milhão de reais, portanto. Todos transformados em benefícios eleitoreiros. Uso da máquina administrativa. Abuso de poder econômico. O governo do estado mandou dinheiro para asfaltar a nossa principal avenida. Quinze de setembro. Homenagem à proclamação da República, data de emancipação de nosso município de São José da Caatinga. O que foi feito com o dinheiro, cerca de 650 mil reais?! Ora, senhoras e senhores, todinho aplicado na compra de votos. As consciências que se vendem eternizam o quadro de miséria em nossa terra. Infelizmente.
Encarou seus antigos companheiros de bancada.
- Todos aqui conhecem a verdade... concedo aparte ao colega Afonso Nobre.
O vereador Afonso Nobre, da bancada do prefeito, ergueu-se do assento para falar. E disse o seguinte:
- Estranha-me que vossa excelência somente agora tenha se dado conta de toda esta realidade. E pior: se tudo isso que foi denunciado hoje nesta tribuna pelo nobre parlamentar for verdade, então vossa excelência de tudo participou, porque esteve conosco, ao nosso lado, até bem dizer ontem, e somente agora resolve proclamar suas afirmativas que são apenas fruto de sua imaginação, de sua exclusiva imaginação. Lamento profundamente que tenha resolvido seguir por esse caminho de mentira e que atende aos interesses daqueles opositores que não querem o bem da nossa terra.
Novo aparte. Desta feita para o líder do prefeito, vereador Rubem Castilho, que fala:
- Quero manifestar minha solidariedade ao colega vereador pelo desaparecimento de seu irmão e dizer que estaremos, todos juntos, nesta Casa, empreendendo todos os esforços no sentido de que ele seja encontrado com a maior brevidade possível. Mas devo ressaltar que tenho aqui, em mãos, um documento do Sanatório Geral do Estado, datado de dois anos passados, relatando de que vosso irmão teve um surto psicótico e que ali permaneceu internado por vários meses, entre agosto e dezembro (exibe o papel que realmente possui timbre da instituição mencionada. Nenhum vereador, contudo, cuida em verificar se de fato contém as informações alardeadas). Significa dizer, vereador, que este desaparecimento pode ser fruto de algum problema mental que tenha reaparecido e, coitado, levado o pobre Josias a andar a esmo pelas estradas que nos cercam e que nos ligam a outras cidades. Vamos manter contatos, portanto, com delegacias de vários municípios e também com emissoras de rádio, jornais, enfim, os meios de comunicação, para que cheguemos ao paradeiro de seu irmão. Quanto a segunda parte do pronunciamento, devo dizer que se trata de uma sandice. Talvez o nobre vereador também esteja precisando de um exame de sanidade mental. Quem sabe seja um problema extensivo a todos os seus familiares...
Jáder não se controla. Avança contra o colega. Ainda consegue esmurrá-lo duas vezes antes de ser contido pelos demais.
Grande balbúrdia no interior da Câmara. Muitos se empurram, falam alto, parece que haverá enfrentamento. A oposição se alvoroça, apesar de estar em menor número.
A polícia entra e serena os ânimos. Indignado, Jáder grita: “É uma ditadura”, e repete a sua afirmação a plenos pulmões até ser levado ao seu gabinete.

Água com açúcar. Ingere com dificuldade dado ao nervosismo. A respiração acelerada, os batimentos cardíacos fora de compasso.
- Filhos da puta. São todos uns filhos da puta. Como pude me enganar por tanto tempo? Não faz mais sentido sermos governados por esse canalha desse Eurico Fontana. Um bandido. Um bandido.
- Calma, vereador, calma, diz o assessor.
A secretária contém o assédio de eleitores que ficam na recepção. Não querem saber de problema algum, de confronto algum. Querem ser atendidos pelo parlamentar. Pedidos. Urgências relativas. Coisas pessoais. Que se dane a política e seus atores canastrões.

César não fez comentários com o amigo, porém ficou bastante assustado com o que viu, ainda mais porque a cena se repetiria em outras residências por ele visitadas, quando conhecidos de longas datas pareciam muito mais velhos do que realmente eram. O que estaria acontecendo com aquelas pessoas?
Os indícios não tardariam a aparecer. Horas antes da convenção recebeu a visita de um vereador do partido adversário. Jáder Montenegro era muito ligado ao grupo do Dr. Eurico. Decidiu romper e imediatamente procurou o candidato César Rodrigues, oferecendo-lhe o apoio.
- Não quero que o senhor me dê nada. Apenas me ajude a esclarecer o desaparecimento de meu irmão.
- Josias está desaparecido? Desde quando?
- Um mês e meio, mais ou menos. Ele trabalhava na clínica “Esperança Garcia” e parece que andou fazendo algumas coisas que desagradaram ao Dr. Eurico. Foi demitido e depois disso nunca mais foi visto. Nossa família está em desespero.
César pensou que o nome da clínica era um contrasenso. Esperança Garcia foi uma escrava sofredora e corajosa. Primeira negra no Brasil a peticionar em favor de si e de seus irmãos de infortúnio.
- Já procuraram o Dr. Eurico?
- Ele diz que não se responsabiliza pelo destino dos seus empregados ou ex-empregados. Cada um que cuide de si.
- Grosseiro como sempre.
- Tu não imagina, César, como ele trata esse povo. Parece um senhor feudal, sendo que os habitantes de São José da Caatinga são os seus vassalos.

Capítulo 3

O deputado César Rodrigues se envolveu intensamente na campanha. Estava determinado em ganhar a eleição, mas reconhecia as dificuldades. O candidato da situação estava em vantagem tanto por conta do envolvimento direto da prefeitura no processo quanto pelo patrocínio que recebia do prefeito Dr. Eurico Fontana, que não dispensava o adjetivo de tratamento.
Numa noite, ainda no primeiro mês de campanha, voltava para casa tarde da noite. Vinha de um comício em localidade rural distante do centro. Estava cansado, passara o dia inteiro andando de casa em casa, distribuindo santinhos, falando sobre suas propostas, tentando angariar votos. A primeira pesquisa seria divulgada no dia seguinte, porém obtivera antecipadamente a informação de que estava perdendo por ampla diferença. Manolo Paraúna, conhecido agiota da região, liderava com mais de dez pontos de diferença.
- Tenho fé que vamos reverter essa diferença. Ainda faltam mais de dois meses para a votação - disse Jáder, que em virtude do posicionamento assumido recebera várias ameaças de morte e fora espancado algumas noites antes, ao chegar em casa de madrugada, depois de um comício na periferia. Os autores do espancamento nada disseram, mas não havia nenhuma dúvida sobre a autoria intelectual.
- A vitória é nossa. É só uma questão de tempo e de trabalho.
O candidato a prefeito percebeu a mulher se aproximando dele em passos lentos. Vinha pela calçada sombria do mercado público. Não queria ser vista. Reconheceu Ingrid. Foi ao encontro dela.
- Está linda como sempre.
- Bondade sua, deputado.
- Posso ajudar em alguma coisa?
- Vim para lhe entregar esses papéis. São documentos que me foram repassados pelo Josias antes de sumir. Ele me disse que deveria procurar alguém que tivesse coragem suficiente para enfrentar o canalha do Eurico.
Repassou a pasta para César, que olhou em redor ao recebê-las. As ruas estavam desertas, exceto pelos seus correligionários, que o aguardavam a alguma distância.
- Sabe o que tem aqui?
- Não faço idéia. Não tive coragem de ver. Mas coisa boa não é, considerando-se o estado de pânico de que estava acometido o pobre Josias ao me procurar. Confio em ti, César, e peço que confie no povo de São José da Caatinga. A maioria silenciosa já não suporta o predomínio do famigerado Eurico Fontana e aguarda ansiosamente pelo momento de dar o troco.

Capítulo 4

Mendes é dono da única panificadora de São José da Caatinga. Veio de Portugal com os pais ainda menino. Herdou o negócio da família.
Constituiu família, enviuvara há pouco tempo. Coisa de dois anos, se muito. Ficara a filha Marluce. Uma criatura linda e muito dócil, mas que estava se portando de forma estranha há alguns meses.
- O que está havendo contigo, filha?
- Nada, pai, nada.
Desconversava sempre.
Desconfiado, Mendes investigou. Contratou um desocupado para segui-la aonde quer que fosse. De manhã ia para a escola. De tarde, dizia que ia estudar na casa de amigas.
Saía três vezes por semana. À noite, passava algum tempo na internet, salas de bate papo, baixando músicas. Adorava ficar ouvindo música até tarde. Mas esse hábito parecia estar sendo substituído por algum outro, desconhecido. Mendes queria saber.
O espião lhe trouxe a notícia que ele não gostaria de saber:
- Está indo para a casa de Luzia, que realmente estuda com ela, de lá as duas saem numa moto e seguem até um bairro da periferia. Ora é Santo Antonio, ora é São Francisco. Sempre na periferia. Então vem um carro preto e pega as duas. A moto fica parada até elas voltarem.
- Tem certeza do que está me dizendo?!
- O senhor me pediu que seguisse sua filha, não pediu? Que soubesse para o senhor o que ela fazendo, não pediu?! Então estou lhe dizendo. Se quiser acreditar, veja com os seus próprios olhos.
Na tarde de sexta-feira, Mendes fez mais. Estava ouvindo no rádio a entrevista do prefeito. Ele falava sobre o recente discurso de rompimento do vereador Jáder Montenegro:
- Um ingrato, é do que se trata este senhor. Nunca deixamos de atender os seus pleitos, de ajudá-lo naquilo que fosse preciso. Ele chegou a nos pedir ajuda para o tratamento do irmão em Teresina. Nunca titubeamos. Agora, somos apanhados de sopetão por esse pronunciamento raivoso, mentiroso, de quem parece afetado por não ser atendido em seus interesses que de repente se tornaram interesses menores. Todos sabem que não temos segredo para o povo de São José. O senhor vereador Jáder Montenegro nos procurou recentemente e pediu que usássemos dinheiro da prefeitura para quitar uma dívida de jogo sua num cassino clandestino de Salvador. Faz tempo que ele tem essas viagens esquisitas para a Bahia, mas nunca imaginamos que ele estivesse envolvido com a jogatina. Então só temos a lamentar e pedir que Deus cuide em apaziguar o seu coração. Não lhe queremos mal e até o perdoamos pela forma truculenta como tem se comportado, rompendo com nosso grupo político e se aliando ao candidato da oposição, o deputado César Rodrigues.
Despediu-se e recomendou que todos fizessem orações pelo vereador porque ele estava precisando.
Mendes viu quando a filha chegou-se para ele e disse que ia sair naquele momento. Luzia a estava esperando em casa para um trabalho da escola.
- Por que esses trabalhos não podem ser feitos aqui de vez em quando?
Ela o beijou rapidamente, falou alguma coisa sem qualquer intenção de ser compreendida e saiu. Mendes apanhou um carro de praça e chegou a casa de Luzia antes da filha. Viu quando Marluce tocou a campainha, as duas saíram numa moto, conforme seu informante lhe dera conta.
Viu quando as duas deixaram a moto no bairro Piauizeiro, à sombra de uma árvore frondosa, e entraram num carro preto e sem placa. Conhecia o veículo. Pertencia ao prefeito Fontana. Era usado em suas escapadas, para não dar bandeira.
As meninas foram levadas até a mansão do político, na zona rural, localidade conhecida como São Benedito. Tudo por aqui tem nome de santo, pensou Mendes, e ficou esperando até a hora em que as duas saíram e voltaram para casa.
Em casa, peitou a filha para dizer-lhe onde passara a tarde. Ela, como sempre, informou que estava em companhia da amiga, estudando.
- Mentirosa, e deu-lhe uma bofetada tremenda. A moça foi ao chão e começou a chorar. Ele a levantou e continuou batendo nela, fortemente, com toda a fúria de um pai indignado.
- Por quê?! Por quê?! Por que está fazendo isso comigo?!
Proibiu-a de sair. Castigo de três meses. Apenas para a escola, devidamente escoltada por um empregado de confiança. Na volta, direto para casa, sem qualquer parada.
- Com relação a Luzia, não quero mais lhe ver com aquela cretina. Ela a está desencaminhando.

Mansão de Eurico Santana. Ele, sentado confortavelmente à beira da piscina, toma uma dose de uísque. Um hábito renovado sempre que recebe uma linda companhia feminina.
Luzia está assustada diante dele.
- Onde está Marluce?
- O senhor não sabe?!
- Não tenho bola de cristal. O que houve?
- O pai dela... Contou toda a história.
O prefeito tomou mais um gole reforçado (sem gelo), levantou-se e mergulhou. Deu algumas braçadas e veio à tona.
Era um homem de sessenta e poucos anos, corpo atlético, bem cuidado. Podia-se dizer rico à custa daquela imensa pobreza e sequidão.
Ficou encarando Luzia e pensando em como poderia se vingar do velho Mendes por tê-lo privado ao menos que momentaneamente de traçar uma comidinha tão deliciosa como a doce Marluce.

Mendes livrou-se do pano que rodeava seu pescoço, pegou a escova de pelos bem lisos e passou sobre os braços, limpando-se do excesso de cabelos. O barbeiro o atualizava sobre as últimas notícias da comunidade.
- Diz que o Agnelo Ramalho vai apoiar a candidatura do doutor César Rodrigues.
- Aquele lá é um cabra safado. Nunca ajudou ninguém. Sempre se srviu da política. Nunca ajudou ninguém. Esta cidade de merda é desse jeito por causa dele e sua família. Oligarcas de merda. Nunca ajudaram ninguém.
Levantou-se. Indignado. Estava quase saindo quando o deputado Agnelo Ramalho entrou.
- Meu caro João Mendes.
- Meu caro deputado Ramalho, cumprimentou, sem fazer-se de rogado.
- E aí, acha que vai dar quem na eleição?
- O que o senhor me diz?
- O que acha do César Rodrigues?
- Fala do engenheiro?
- Ele mesmo.
- O senhor está com ele?
- Que jeito, né?! Ou ele ou ninguém. Não voto em candidato desse cretino do Eurico Fontana.
O barbeiro Leonel ficou sorrindo da cena.
- Depois são os políticos que não prestam. Quanto cinismo!
- O que disse, Leonel?, perguntou Ramalho.
- Nada não, deputado, nada não. Estou apenas admirando aqui o senhor votar contra o Eurico Fontana. Logo o senhor, que o colocou na política.
- Mais do que isso, meu caro, eu ensinei a ele o “canto da acauã”. Depois que aprendeu o canalha me largou os pés...
- Quer dizer então que o senhor vota em César Rodrigues?
- Sim, meu voto pessoal, porque trabalhar mesmo não quero mais. Vou encerrar este mandato e pendurar as chuteiras. O Eurico vai ser uma preocupação exclusiva de vocês.
- Abandonando o campo de batalha, deputado?
- São os anos, meu caro Leonel, são os anos...

Mendes andou duas centenas de metros. Alguns minutos. Tempo apenas de atravessar a praça. Estava passando por detrás do mercado em direção à padaria Bragança quando foi encurralado por quatro homens andando a cavalo. Velho cretino, disse um deles, descendo e aplicando-lhe um murro na testa. Caiu, rolou pelo chão, os outros aproveitaram-se da situação e também desmontaram para espancá-lo. Velho infeliz. Vai aprender a respeitar, disse outro. Agora aprende. Por bem ou por mal. Está pensando o quê?! Está pensando que é quem?! Aprende, velho escroto, a respeitar cara de homem. Com macho não se brinca. Não pense que estamos para brincadeira. Isto é apenas um aviso. O pior vem depois. Experimente continuar com essa sacanagem de proibição. Vai ver no que vai dar. Vai tomar no cu, velho de merda. Rolou pelo esgoto e ficou encurralado em frente a porta da bodega de Expedito Aureliano. Muitos curiosos ficaram olhando à distância. Ninguém teve coragem de se aproximar. Ninguém o defendeu. A polícia foi avisada mas já chegou tarde, os homens tinham partido. Parecia coisa combinada. Filhos de uma cadela.

No hospital, atendimento precário. O rádio falava muito sobre o assunto.
Eram as reclamações populares. O radialista as levava ao ar na medida do possível. Não podia dizer muita coisa.
A emissora era bancada pela prefeitura. Seu patrão era inclusive assessor do prefeito. No dizer da oposição, apenas mais um “babão de Fontana”.
O vereador Lourenço Manoel chamava os “babões do prefeito” de “fantoches”.
Era um dos mais combativos, muitas vezes o único a se pronunciar contra os desmandos. Agora ganhara o reforço de Jáder. Pode ser que as coisas melhorem pros lados da oposição. Pode ser.

O dossiê revelaria uma verdade trágica para César Rodrigues, realidade da qual ele já tinha fortes suspeitas. As informações eram mais do que suficientes para provar que Dr. Eurico estava metido em algo pior do que a corrupção na prefeitura.
Antes do raiar do dia recebeu a notícia sobre o falecimento de Teresa Norbelina, uma de suas mais fiéis eleitoras. Não a via há tempos e tinha programado uma visita em sua residência por aqueles dias. A morte chegara antes. Ao chegar no velório viu-se diante de uma anciã que em nada lembrava a vitalidade de Teresa em seus trinta e nove anos de idade.
César, que era engenheiro de formação, já tinha ouvido muito sobre eugenia. Os compêndios médicos a definem como ciência que se ocupa com o estudo e cultivo de condições que tendem a melhorar as qualidades físicas e morais de gerações futuras. Os métodos foram empregados pelos alemães antes e durante a Segunda Guerra Mundial. O objetivo seria aperfeiçoar a raça humana através da consolidação da raça ariana. Seis milhões de judeus foram mortos nos campos de concentração. Mais de cinqüenta milhões de pessoas morreram durante o conflito. O mundo irremediavelmente nunca mais seria o mesmo.
- A natureza é impiedosa, dizia Hitler. Ela age totalmente desprovida de emoções, separando os fortes e fracos e eliminando aqueles que não estão aptos à sobrevivência.
Os médicos nazistas fizeram experiências as mais terríveis com os judeus, que eram confinados em campos de concentração. Negros e deficientes eram simplesmente eliminados. Não haveria espaço para eles no mundo anunciado pelo III Reich e que teria a duração de mil anos.

Capítulo 5

A caatinga é um tipo de vegetação constituída de espinheiros, pequenas árvores que perdem as folhas durante a estação seca. Característica da região Nordeste do Brasil. Nela, sobrevivem apenas os espécimes mais resistentes.
Procurou o deputado Agnelo Ramalho. Ele conhecia Eurico como ninguém. Sabia do que ele era capaz para se manter no poder e tornar-se ainda mais forte. Mas aquilo era demais. As espécies deveriam evoluir naturalmente. Tentar induzir essa evolução era um desafio grave às leis da natureza, podendo causar uma catástrofe de conseqüências imprevisíveis.
- Sua candidatura vai muito bem, só acho que ainda não dá para ganhar do Eurico - disse Ramalho, ao recebê-lo. - Ele, se quiser, elege prefeito até um poste.
- Poderíamos ser vitoriosos se houvesse a união de todas as forças políticas oposicionistas. Mas os grupos políticos tradicionais simplesmente cruzam os braços para ver como é que fica.
- Estamos cansados de apanhar, meu jovem, o povo simplesmente endeusa esse canalha.
A conversa durou aproximadamente uma hora, ao fim da qual César se convenceu de que Agnelo realmente não queria mais saber de política e tinha horror ao antigo protegido. A criatura tornara-se muito maior que o criador e já a tinha devorado há muito tempo.
Despediu-se e rumou para seus compromissos políticos daquele dia, que incluíam caminhada, carreata e comício no bairro Estação. Antes de chegar ao destino, porém, o seu veículo foi interceptado por uma caminhonete repleta de homens mal encarados. Um deles desceu e veio ao seu encontro. Reconheceu Licurgo, o capanga número um de Eurico Fontana. Seguia as ordens do líder político desde que ele era apenas um acadêmico de medicina trabalhando na maternidade da família Ramalho. Diziam que era um homem impiedoso e cruel, com várias mortes nas costas.
Licurgo fez questão de mostrar que estava armado, embora mantivesse o revólver enfiado no cós da calça, a coronha coberta para camisa larga. Do pescoço pendia um medalhão de prata com a imagem de Nossa Senhora das Dores. Barbudo, dentes encardidos, cabelo retocado com tintura barata.
- Poderia tirar o carro do meio? Está impedindo a minha passagem - reclamou o candidato.
As pessoas poderiam servir de testemunha, mas preferiram fechar as portas e janelas. Licurgo tinha fama de mau. Não queriam problemas com o famigerado pistoleiro.
- O senhor é que está impedindo a nossa passagem, doutor. Estou aqui apenas para lhe dar um aviso.
- Da parte de quem?
- Da minha parte mesmo.
- E no que posso estar prejudicando o senhor?
- Perguntas, doutor, perguntas demais. O senhor tem feito muitas indagações sobre coisas que não lhe dizem respeito.
- Como não me dizem respeito?!
- O senhor nem é filho daqui.
- Quem não é filho daqui é seu patrão. Eu, pelo menos, tenho a vinculação afetiva de meus pais e avós. E passei parte da minha infância em São José da Caatinga...
- O senhor é que sabe.
Cuspiu no chão, bem perto da porta do veículo do deputado, deu-lhe as costas e partiu. Mais tarde, César comentou o fato com Jáder, que o advertiu sobre comentários de bastidores acerca das eleições. As pesquisas anteriormente divulgadas, segundo o vereador, estariam fraudadas. César ainda não estava na dianteira, mas a vantagem do outro candidato não era tão grande. Os dados indicavam um crescimento considerável de César nas semanas seguintes, ao mesmo tempo em que mostravam a queda acentuada de Manolo desde o começo da campanha. Os índices de rejeição do candidato da situação eram muito grandes.
- O que acha que devo fazer?
- Procurar a polícia, registrar queixa e se não der jeito, vai no Ministério Público. O promotor há de encontrar uma alternativa. Mas não se intimide. É isso que ele quer.
- Notícias de seu irmão?
- Nenhuma, infelizmente.
- E seus pais?
- Meu pai não fala há várias semanas. Minha mãe está sempre perdida em orações. Os grupos se revezam em minha casa. Mas eu não tenho mais nenhuma fé de encontrá-lo com vida.

Capítulo 6

O delegado era uma figura controversa. Na juventude, fora um baderneiro reconhecido e fichado. Filho de um rico fazendeiro do município, nunca dera bolas para a lei e aprontara as mais terríveis trapalhadas. Entrou para a política e exerceu três mandatos de vereador, mas também não serviu para grande coisa nessa atividade. Ganhou emprego público de agente de polícia e através da influência política da família conseguiu chegar a delegado. Mesmo assim, não deixava de fazer política e atualmente militava ao lado de Eurico Fontana. Para Augusto Azenário, mais conhecido como Mordedor, o importante era estar próximo do poder.
- Em que posso servi-lo, deputado?
- Estou aqui para registrar uma queixa contra Licurgo Alvino, que o senhor deve conhecer.
- Refere-se ao capataz da fazenda de Dr. Eurico?
- Não reconheço sua atividade como capataz. Para mim, ele se parece mil vezes mais com um pistoleiro.
- O que deseja registrar sobre ele?
- Ameaça.
O delegado ficou lívido. Aconselhou César a esquecer o assunto. Segundo ele, aquilo estava com cara de mal entendido. Eurico não seria louco de ameaçar um adversário em plena campanha política. Ainda mais que o candidato da prefeitura estava na frente. “Pelo menos é o que indicam as pesquisas”, concluiu, sorridente, percebendo-se naquele sorriso o escarnecimento de quem também julga partilhar da vitória.
- De todo modo, fica o registro. E agradeço antecipadamente pelas providências cabíveis. Não gostaria de me dirigir à Promotoria de Justiça para tratar de assunto que julgo atributo da polícia.
- Fique à vontade para adotar a atitude que achar conveniente.

A campanha estava cada dia mais agitada. Nos comícios de Manolo Baraúna, tanto ele quanto seus candidatos a vereador faziam insinuações pejorativas sobre a conduta de César Rodrigues. Diziam que o jovem engenheiro tinha inclinações homossexuais. Estranhavam o fato de aos trinta e tantos anos ainda não estar casado e não ter sequer uma namorada conhecida. Questionavam o fato de alguém que não constitui família se julgar apto a dirigir os destinos de milhares de cidadãos de um município.
Certa manhã, os muros da cidade amanheceram pichados com os seguintes dizeres:

CÉSAR RODRIGUES, FORASTEIRO

CÉSAR, CANDIDATO DAS OLIGARQUIAS E DOS BANQUEIROS

Ou então simplesmente:

CÉSAR RODRIGUES É VIADO

Os autores nunca foram identificados. Mas as agressões eram atribuídas à situação.
O prefeito foi ao rádio lamentar o baixo nível da campanha: “Nossos adversários fazem de tudo para chamar atenção. Inclusive pichar os muros da cidade com frases contra o seu candidato para depois tentar nos responsabilizar. São eles mesmos que fazem essas loucuras. Por que haveríamos de nos incomodar com um candidato que já está previamente derrotado? E mais: temos o que fazer. Nosso compromisso é em administrar o município. A campanha que siga o seu ritmo normal. Temos o nosso candidato, mas nada de interferir em favor de sua candidatura. Ele tem capacidade e liderança suficiente para vencer sem qualquer interferência nossa. Manolo Baraúna é um empreendedor de sucesso, reconhecido além dos limites do nosso município...”
Na sequência, entra o candidato Baraúna. Ele fala empolgado:
- Temos uma história de serviço neste município. Nosso adversário, ao contrário, nem é daqui, não mora aqui. Vive na capital, vem apenas em tempo de eleição, conquista os votos e volta para o seu bem bom de luxo e riqueza na cidade grande. Vem, inclusive, com muito dinheiro, certamente de banqueiros de Teresina, de Fortaleza, de Pernambuco, de gente que quer se apossar da prefeitura para tentar sugar até a última gota do nosso sangue. Não deixaremos que isso aconteça. O povo é mais forte e vai reagir contra essa tentativa de posse dos latifundiários, dos oligarcas, dos agiotas e banqueiros que patrocinam a campanha do nosso adversário.
César pediu direito de resposta e não foi atendido.
A rádio foi denunciada por envolvimento com a campanha de Manolo Baraúna.
Foi condenada ao pagamento de multa superior a 120 mil reais.
Seus donos recorreram da decisão de primeira instância.
Os valores nunca foram recolhidos.
Diz-se que o processo ainda tramita.

O candidato da oposição, se bem quis, fez uma gravação em CD e mandou rodar no carro de som em torno da praça central, do mercado público, em alguns bairros, com audiência limitada. O vereador Lourenço Manoel estava nervoso. Desse jeito vamos terminar perdendo a eleição, deputado, disse ele ao candidato. César disse que nada mais podia fazer. Pediu para falar na rádio e não foi atendido. Restava-lhe apenas processar, foi o que fez. Agora era esperar a decisão da Justiça. Devíamos é colocar fogo nessa joça, disse o parlamentar, ofendido pela maneira como vinha se comportando o radialista apresentador do programa. Um filho da puta, é o que ele é. Tem razão, meu caro, disse César, mas acho que deve conter os seus ânimos. Sabe do que eles são capazes. Podem muito bem aprontar para o radialista e depois colocar a culpa na gente. Lourenço ficou em silêncio. Jáder dava voltas pela sala no comitê de campanha. Dezenas de eleitores estavam do lado de fora esperando para ser atendidos. Bom, disse o candidato a prefeito, agora os senhores vão me desculpar, mas tenho uma reunião com o pessoal da coordenação.

Capítulo 7

A coordenação de campanha de César achou que ele não deveria se pronunciar sobre as ofensas. Deveria concentrar seus esforços no corpo-a-corpo e na apresentação de propostas. Deveria falar apenas sobre propostas. Dizer o que pretendia fazer para melhorar a vida da população. Se eles estavam agindo daquele jeito é porque o jogo ainda não estava decidido - como apregoavam. Alguém sugeriu que se contratasse uma pesquisa, mas a coordenação financeira argumentou que não dispunha de recursos. Seriam necessários pelo menos cinco mil reais e àquela altura necessitariam de todo o dinheiro para a própria campanha - combustível, mobilização, adjutórios.
Certa manhã, o candidato a prefeito foi procurado por uma mulher desesperada. Gertrudes era proprietária de uma banca de verduras no mercado central e estava pedindo ajuda para encontrar o filho Luís, de dezesseis anos, que estava desaparecido há quarenta e oito horas mais ou menos. Estava sentindo uma brutal dor de estômago e decidira procurar auxílio médico na clínica “Esperança Garcia”. Na oportunidade, a mãe notara que os pêlos da sobrancelha direita estavam ligeiramente esbranquiçados e alguns fios brancos também apareciam no meio da farta cabeleira.
Aquele não seria o acontecimento mais devastador daquele dia. Pouco antes do horário do almoço César estava no comitê quando recebeu a informação de que a polícia havia encontrado o corpo desfigurado de um homem com idade estimada em vinte e cinco anos. Indícios, como roupas e calçados, apontavam que podia ser o cadáver de Josias Montenegro. Estava próximo ao Riacho das Almas e o delegado logo anunciou que tinha morrido vítima de afogamento. Havia muitos hematomas em todo o corpo, o que sugeria a hipótese de espancamento.
Jáder não teve dúvidas. Josias tinha uma tatuagem na panturrilha direita, imagem de um lagarto típico da caatinga. Entrou em desespero, amaldiçoou publicamente o médico Eurico Fontana e disse que iria matá-lo.
César o puxou para o lado.
- Tenha calma. Precisamos manter o controle.
- Não tenho condições de manter a calma, César. Não podemos continuar fingindo que esse canalha não tem culpa no cartório.
Ingrid amparou Jáder e o levou para casa.
- Por que não me contou, Ingrid, sobre os papéis?
- Fiquei com medo de sua reação e de que a morte do seu irmão e de tantos outros caia no esquecimento.
- Esse homem tem que pagar pelos crimes que cometeu.
- O pagamento começa agora, com a vitória de César na eleição. Depois, temos que nos esforçar para garantir que essas provas sirvam de base para um processo judicial.

Mendes foi até a delegacia. Registrou queixa contra Eurico Fontana. Disse que fora agredido por capangas do médico. Tudo porque o prefeito estava saindo com sua filha, Marluce, e ele a proibira de continuar se encontrando com o desgraçado. Fora pego de tocaia por homens a cavalo. Reconheceu dois que haviam andado em sua panificadora alguns dias antes em companhia de Licurgo, capanga de Fontana. Sabia muito bem que eram homens a serviço do prefeito para coisas sujas como agredir um cidadão trabalhador indefeso a caminho de casa. Teve que buscar atendimento médico fora de São José da Caatinga. O hospital local não oferecia nenhuma condição. Soube também que o radialista Chico Tenorio estava ameaçado de demissão porque insistia em falar a verdade. O infeliz estava bebendo demais. Devia haver alguma coisa por trás disso envolvendo o prefeito municipal. O delegado apenas escutava enquanto Mendes ia falando e falando. Ele soube o que Fontana está saindo com a mulher dele. Começou a dizer umas coisas na rádio por ódio. Mesmo sabendo que não pode abrir a boca contra o prefeito porque é a prefeitura que patrocina a rádio. Todo mês a diretoria recebe dinheiro grosso. Bolada grande. O delegado o interrompe.
- Seu Mendes, seja direto. O senhor veio falar contra o prefeito, contra o Licurgo, fazer acusações sem prova de uma agressão que o senhor sofreu, uns arranhões aí, pode ter até caído, se desequilibrado... então o senhor começa com um assunto e mete outro pelo meio. Será que essa conversa sua não está meio variada?
- O senhor me respeite, seu delegado, sou um homem trabalhador, cumpridor de minhas tarefas e obrigações, não aceito ser tratado desta forma na delegacia de...
- Pois aqui quem diz como trata sou eu. O senhor, se quiser, diga sua verdade e que seja verdadeira e depois se retire. Porque não tenho tempo para ouvir besteiras. Tem provas de que foi Licurgo quem o agrediu? Tem provas de que foi agredido? Não? Então, por favor, deixe-me trabalhar.
Mendes saiu sem dizer mais nenhuma palavra. Estava com o coração apertado. Batendo acelerado. Pensou em ir até em casa, pegar a arma, voltar e atirar no meio da cara do desgraçado. Mas não ganharia nada com isso. Pensou em mandar a filha para fora, mas não sabia viver sem sua companhia. Era louco pela menina. Parecia-se demais com a finada. Cuidava até que bem dele. Mas de repente dera para sair de tarde para se encontrar com o prefeito. Amaldiçoado seja. Vamos ver no que vai dar. Vamos ver quem tem força para sobreviver a isso.

Capítulo 8

À tarde, houve confronto entre militantes dos dois lados. Os adeptos de César Rodrigues seguiam pela avenida principal, enquanto os correligionários e partidários de Manolo Baraúna andavam por uma rua transversal. Agitavam faixas, cartazes e bandeiras. Diziam palavras de ordem. Entregavam santinhos e panfletos com mensagens de seus respectivos candidatos. Em dado momento, os dois grupos ficaram frente a frente. O confronto foi caracterizado como uma verdadeira batalha urbana. Inúmeras pessoas ficaram feridas. Carros e casas foram depreciados. A polícia foi acionada, mas não conseguiu conter a balbúrdia. Por via das dúvidas, prendeu principalmente os eleitores de César Rodrigues. Os demais eram soltos à simples menção do nome de Manolo Baraúna. Bastava dizer “Sou eleitor de Manolo...” e eram prontamente liberados.

Mendes foi até a casa de Chico Tenório. A mulher do radialista o recebeu alegremente.
- Onde está seu marido?
- Foi para a rádio.
Rumou para lá. Tenório estava começando o programa.
- Gostaria de fazer um desabafo.
- Sobre o quê, meu caro Mendes?
- Queria falar sobre a prefeitura, sobre este cafageste do Eurico Fontana.
- Desculpe, Mendes, mas não será possível. Sabe que tenho ordens...
- Ordens?! Você tem ordens?! Conversa fiada, Tenório. Você tem muito é chifre.
O radialista foi apanhado de surpresa.
- O que está dizendo, Mendes?! Por que está dizendo isso?!
- É um corno acomodado. Sabe disso. O prefeito está comendo a sua mulher.
Recebeu um murro violento sobre o nariz e não conseguiu ficar de pé. Chico Tenório teve que ser agarrado por empregados da emissora e ouvintes que estavam de passagem para não continuar batendo no padeiro.
- Baitola. Corno é tu, bandido. Corno é tu. Respeita, padeiro de uma figa. Respeita mulher de homem.
- Respeito não. Não respeito corno. Desgraçado. Corno.
Foi retirado e levado para a delegacia. Mordedor o trancou numa cela suja, úmida e mal iluminada no fim do corredor conhecida como “masmorra”.

César foi informado sobre a prisão de Mendes. Foi até lá. Era seu amigo e eleitor. Fazia gosto que ele namorasse com sua filha. Para Mendes, César era um homem de bem. Um cidadão simpático, falante e atencioso. Deputado estadual. Podia ser um excelente marido.
- Ele a deflorou, César.
- Eurico?
- Sim, aquele desgraçado, a gente cria uma filha para isso.
- Fique calmo, meu amigo.
- Olhe para mim. Não tenho motivo para ficar calmo, meu amigo. Estou preso, está vendo?! Preso! Um cidadão trabalhador, preso.
- Fique tranquilo, estou trabalhando para tirar você dessa merda. Mas tem que me prometer uma coisa.
- O quê?
- Quero que fique longe da cidade por uns dias. Você está muito nervoso por causa desse negócio com Marluce.
- Não vou sair de minha terra. Quero ficar nessa porra até o fim dos meus dias. Não vai ser esse prefeito de merda, esse delegado babão, esse fantoche do Baraúna que vão me expulsar de São José da Caatinga. Sou um devoto, sabe disso, rezo todos os dias, não cometi nenhum crime.
- Não, claro que não, mas sabe que eles não irão deixá-lo em paz.
- Covarde.
- O quê?!
- Você não. Estou falando do Chico Tenorio. Covarde. O cara está traçando a mulher dele, César, está comendo a Margarida e o cara nem aí. Como Eurico é prefeito, pode tudo, comer a filha de quem quiser. Comigo não, ele vai pagar pelo que fez com minha filha... Pelo que fez comigo.

César e Ingrid.
- Procure falar com ela. Saber o que aconteceu.
- Por que está preocupado com isso? Tem a campanha, coisas mais urgentes, inadiáveis.
- Sei disso. Mas o pai está prestes a ter um colapso. Estou conseguindo a soltura dele. Os advogados dizem que não é nada demais. Estão redigindo a petição e logo ficaremos sabendo o valor da fiança a ser arbitrata pelo juiz.
- O juiz é com eles.
- Como assim?!
- O juiz é com o prefeito. Faz tudo o que Fontana manda. Tem até um empregadinho do prefeito que é funcionário dele. Oficial de gabinete. Me parece.
- Puta que o pariu! Não posso acreditar.

O juiz Antero Quental era um sujeito muito afetado. Parecia efeminado em excesso. Havia comentários sobre sua sexualidade. Um sujeito arruaceiro fora preso pela polícia. Na cadeia, disse que era amante do magistrado, que ninguém o manteria no xilindró. O apelido do indivíduo é impronunciável publicamente. As pessoas o chamam de Juvênio Cu e todo mundo só o conhece assim. Não se sabe o seu sobrenome. Mas é conhecido apenas e tão somente como Juvênio Cu. Ninguém sabe mais nada sobre ele. Seu pai, sua mãe. Mais nada. Seus irmãos. Nada sobre nada. Apenas que o juiz tem muita consideração por ele. Tanto que no mesmo dia ligou para o delegado bajulador e mandou que soltasse o amigo. Um elemento como Juvêncio Cu não podia permanecer preso. Mas era um arruaceiro. Baderna em via pública. Não podia e pronto. Preso, não. Solte imediamente. O delegado não disse mais nada. Chamou o carcereiro e determinou a soltura do abençoado de sua santidade o magistrado.
O nome fora atribuído pelo pai, também jurista, grande admirador do poeta Quental. O problema é que, ao contrário do genitor, não era muito dado a leituras, conseguira o cargo graças a algumas manobras feitas pelo próprio pai, pouco ortodoxas por sinal, junto ao Poder do qual fazia parte. Tornara-se juiz, mas tinha pouco de um magistrado de verdade.
- E então, tudo bem contigo?
- Eu disse para aquele policial cretino que não me prendesse, que eu seria solto tão logo você soubesse.
- Quem te prendeu?
- Um tal de Noronha.
Quental conseguiu de pronto a transferência do PM. Foi mandado para uma cidade nos cafundós do Judas em menos de quarenta e oito horas. Coisa de quem mexe com quem tem poder.

Antero de Quental não concedeu a soltura do português. Disse que iria deixá-lo preso mais alguns dias. Seu crime fora muito grave. Ofensa à autoridade, desacato e coisa do gênero. Tem que ser punido mesmo. E exemplarmente.

- Cachorro, disse César, ao tomar conhecimento. E agora? É capaz de Mendes fazer uma loucura.
- Concordo, falou Ingrid. E agora, o que vamos fazer?
- Vamos peticionar na capital. Não é possível que o Tribunal concorde com a sandice de manter um homem preso por causa de tão grande besteira!
Dois dias depois chegou a ordem de liberação.
Em casa, Mendes tentou se suicidar. Tomou dezenas de comprimidos ao mesmo tempo. Ficou gravemente afetado, teve que ser internado na capital. Por pouco não perdeu a vida.
O caso teve grande repercussão e custou mais alguns pontos à candidatura de Manolo Baraúna. Em contrapartida, o candidato da oposição viu seu nome crescer consideravelmente junto ao eleitorado. Pelo menos era o que se sentia pelas ruas da cidade. Na zona rural, havia também um grande repúdio ao nome do candidato oficial. Tudo por causa do grande tempo de dominação do prefeito. As pessoas estavam manifestando cansaço com relação ao esquema dominante.

César Rodrigues fez uma caminhada pela praça central.
Em poucos minutos havia centenas de pessoas ao seu lado, ampliando-se o coro dos descontentes.
Alguns jornalistas da capital vieram até São José para entrevistar o deputado sobre denúncias contra o prefeito, bem como para apurar detalhes sobre a morte de Josias Montenegro. O vereador Jáder estava responsabilizando o chefe do executivo e fazendo mais denúncias sobre a atuação da clínica “Esperança Garcia”.
Os jornalistas colheram informações com César e Jáder. Depois foram ouvir o prefeito. Da prefeitura saíram convencidos de que tudo não passava de futrica da oposição. Tudo por conta do período eleitoral.
- Em tempo de eleição, movidos pelo desespero, eles inventam todo tipo de coisa. Vocês bem sabem que não é a primeira vez que sou denunciado injustamente por essa gente. No entanto, temos a liderança política, temos quatro mandatos não consecutivos na prefeitura, isso é liderança, próprio de quem trabalha pelo povo. Ao contrário dessa turma do apocalipse. Ademais, sou um parceiro leal dos jornais em que vocês trabalham. A propósito, digam ao departamento comercial que tenho todo o interesse em ampliar a participação da prefeitura e da clínica no rol de anunciantes.
No dia seguinte, a manchete:

PREFEITO ACUSA OPOSIÇÃO DE TENTAR DESESTABILIZAR SEU GOVERNO

A matéria informa que seus opositores tentam tumultuar a administração municipal com denúncias vazias. A maioria motivada por questões eleitorais. Não procede, ele disse, qualquer tipo de acusação sobre experiências estranhas na clínica de que é proprietário. Também não faz qualquer sentido a denúncia de que estaria usando dinheiro da prefeitura na campanha de Baraúna.

Colocou o jornal sobre a mesa e deu uma sonora gargalhada.
- Amadores. Pensam que conseguem me atingir, comentou.
Baraúna também sorriu. Estava contente com o noticiário. Em poucos meses, se tudo corresse dentro do previsto, e não havia motivo para o contrário, vez que a cidade estava totalmente dominada, seria eleito prefeito.
- Temos o juiz, o delegado e a imprensa. Do que mais precisamos?
- Precisamos de trabalho. Não é apenas estar na liderança. É preciso mantê-la, disse Fontana.
- Por falar nisso, o doutor Quental está reclamando de que sua parcela diminuiu este mês.
- Viado cretino. Só pensa em dinheiro. Caiu mesmo. Caiu porque o Fundo de Participação do Município também caiu. Ele tem que ter paciência. No mês que vem melhora.
- Em tem sido muito útil, Fontana, não podemos vacilar com ele agora. Tem muita coisa para acontecer. Vamos precisar muito da colaboração dele. O delegado tudo bem, a gente enrola. Mas o juiz não dá para enrolar. Se ele quiser, na hora que quiser, fode com a gente.
Fontana gargalhou novamente.
- Fode nada, Baraúna, nós é que fodemos com ele.
E acionou um vídeo no qual o magistrado aparece de quatro. Dois garotos ao mesmo tempo. Parecem menores. De outra cidade.
- Caralho!, exclamou Baraúna.
- Está vendo? Estou coberto de razão. Não tenha medo. Esse juiz vai comer do que dermos para ele. Embora ele prefira ser comido.

Capítulo 9

O velório de Josias transcorreu em clima de profunda indignação.
Sentimento que ampliou-se ainda mais com a presença de Fontana e alguns dos seus secretários.
César aproximou-se de Ingrid. Comentou:
- Isso pode não terminar bem.
- Que cínico. O que esse cretino está fazendo aqui?!
Jáder notou a presença de Fontana. O prefeito se aproximou para cumprimentá-lo.
Ele se levantou. Disse para o outro:
- Por favor, aqui não, gostaria que o senhor se retirasse da minha casa. Não quero ser indelicado na frente dos meus pais, de toda essa gente, no velório de meu irmão. Logo o senhor, que foi o responsável pela morte dele.
A mãe de Jáder não se conteve.
Ao notar a presença de Fontana começou a gritar:
“Assassino! Assassino! Assassino!”
O prefeito saiu mais que rapidamente.
Manolo Baraúna estava chegando e sequer entrou. Deu meia volta dali mesmo.
Não era bem vindo no lar dos Montenegro que já foram seus aliados políticos.
No carro, com Fontana:
- Eu bem que avisei.
- Em política não podemos nos guiar por esses sentimentos tolos, Baraúna, temos que arriscar. Foi arriscando que cheguei até aqui.
- É, mas ir até a casa do sujeito depois de tudo...
- De tudo o quê, seu fresco?!
Baraúna percebeu o olhar frio de Fontana. Um olhar atemorizador.
- De nada. De nada. Desculpe. Vamos mudar de assunto.


Capítulo

Jáder estacionou o carro ao lado de César, que andava em direção à Promotoria de Justiça. Iria fazer denúncia contra o comportamento passional do delegado de polícia.
- Não temos mais tempo a perder.
- O que quer dizer?
- Tem que ser agora ou nunca.
- Não estou te entendendo, Jáder.
- Precisamos aproveitar que as atenções estão voltadas para essa confusão. Vamos até a clínica recolher mais provas...
César não pensou duas vezes. Saltou no jipe e seguiram a toda velocidade.
O local estava realmente desguarnecido. Eurico estava acompanhado com apenas um segurança. Os demais estavam envolvidos na caminhada ou foram enviados à delegacia para garantir a soltura do seu pessoal.
- O que pensam que estão fazendo?! - exclamou, ao ver César e Jáder entrarem no prédio.
O segurança tentou sacar a pistola, mas Jáder foi mais rápido. Atirou na perna do indivíduo, apropriou-se da arma e desferiu potente chute na sua cabeça. Eurico ficou aturdido e esbravejou que ambos iriam pagar muito caro pela ousadia.
- Cala a boca, seu desgraçado - gritou Jáder, apontando-lhe a arma.
- Calma - disse César. - Não viemos aqui para isso. Vamos fazê-lo pagar de outra forma.
Eurico riu espalhafatosamente. - Pagar?! Eu?! Acham que devo alguma coisa? Estão muito enganados. Não tenho débitos com ninguém, pelo contrário. Tenho serviços prestados à essa comunidade e sua gente. E não serãos retardados como vocês que irão me derrubar. Podem ficar certos que pagarão caro pela ousadia.
César o silenciou com um murro na boca. - Velho safado.
Jáder agarrou o médico pelos cabelos e o empurrou para o interior da clínica. O que viram em seguida não poderiam criar nem mesmo se tivessem a imaginação mais fértil do planeta. As modernas instalações eram de conhecimento geral. Mas ninguém podia imaginar a amplitude daquele laboratório distribuído em vários cômodos refrigerados. A assepsia do lugar era de impressionar mesmo os mais avançados centros médicos do mundo. Havia, naquele momento, vários pacientes internados. Recebiam um tipo de transfusão a partir de recipientes colocados sobre as macas. Havia, no centro do edifício, uma giganteca biblioteca, em que predominavam publicações sobre eugenia, uso de anfetaminas, raças híbridas.
- O que está acontecendo aqui?
- Vocês jamais entenderão - reclamou Eurico.
Jáder dirigiu-se até uma das macas. Reconheceu Luís, o filho desaparecido de dona Gertrudes.
- Ele está... os cabelos brancos, as faces enrugadas. O que isso quer dizer? Por que essas pessoas estão envelhecendo precocemente?! É algum tipo de doença?
- Responda - falou César, golpeando Eurico com um murro sobre a nunca.
O médico ficou momentaneamente zonzo e quase perdeu o equilíbrio, mas amparou-se numa mesa e encarou o deputado.
- O senhor vai me pagar por isso, deputado, nem imagina o quanto.
César sentiu um frio na espinha diante daquele olhar temível.
- É a terceira vez que me ameaça. Já deve ter percebido que não tenho medo de suas ameaças. Agora responda o porquê do envelhecimento. Essas pessoas são jovens, conhecemos a maioria delas. De repente, os cabelos brancos, a pele murcha...
Jáder avançou sobre Eurico e o golpeou várias vezes seguidas. Enquanto isso, na sala ao lado, o segurança estava se esvaindo em sangue. Jáder foi contido, estava descontrolado.
- Deixe-me acabar com esse infeliz.
- Vamos sair daqui, Jáder, antes que seja tarde.
Eurico estava no chão, os olhos roxos, os lábios cortados e sangrando, o rosto inchado. - Vocês não entendem... - disse. - Estou ajudando essas pessoas. O envelhecimento é um efeito colateral, meramente transitório, estamos ajustando as etapas para garantir que em breve isso não venha mais a ocorrer.

Barulho do lado de fora. O segurança caído começou a gritar: “Socorro, aqui, por favor, me ajudem...”
Ouve-se a voz de Licurgo. “Por aqui”, ele dizia.
Passos apressados, barulho de móveis sendo arrastados.
Jáder olhou para a entrada do laboratório.
César olhou para Eurico Fontana.
O médico estava sorridente. Mais uma vez triunfara. O segredo estava mantido.
Quando Licurgo entrou no recinto, à frente dos demais capangas, César e Jáder perceberam que não tinham mais nenhuma chance.

Todos lamentaram o desaparecimento do candidato a prefeito César Rodrigues e do vereador e candidato à reeleição Jáder Montenegro. Ninguém ousava imaginar o que poderia ter acontecido com eles, mas lembravam-se perfeitamente de tê-los visto na data em que, a poucas semanas das eleições, os grupos adversários haviam se digladiado em praça pública. O confronto jamais sairia da memória coletiva de São José da Caatinca, nem os terríveis acontecimentos que o precederam.
Dois dias depois do pleito, e confirmada a vitória de Manolo Baraúna, a polícia anunciou a descoberta de dois corpos carbonizados na fronteira com a Bahia. Os policiais da delegacia de entorpecentes estavam fazendo uma batida na região. Investigavam denúncia de que terras públicas estavam sendo usadas para cultivo de maconha. Os restos mortais não admitiam qualquer possibilidade de identificação, haja visto que até mesmo a arcada dentária das vítimas fora arrancada.

Extraído dos jornais da capital:

DEPUTADO E VEREADOR AINDA DESAPARECIDOS

“O desaparecimento do deputado César Rodrigues e o vereador Jáder Montenegro já dura setenta e seis dias. Os dois estavam em campanha no município de São José da Caatinga, a quatrocentos e vinte quilômetros da capital. César disputava a prefeitura com chances reais de vitória quando simplesmente desistiu e desapareceu, juntamente com o vereador Jáder, que era de partido adversário mas estava dando apoio à sua candidatura. Nos dias imediatamente anteriores ao desaparecimento o candidato vinha fazendo severas denúncias contra o médico Eurico Fontana, uma das mais destacadas figuras políticas daquela região.”

MÉDICO É HOMENAGEADO POR ASSOCIAÇÃO

“A Associação Estadual de Medicina fez homenagem na noite de ontem ao médico Eurico Fontana, diretor da clínica ‘Esperança Garcia’ e ex-prefeito de São José da Caatinga. Ele é notabilizado por pesquisas que garantem maior resistência humana na convivência com o semi-árido e contribuíram para reduzir sensivelmente as taxas de mortalidade infantil naquele município.”

Dr. Eurico fechou o jornal e fixou o olhar no enorme camaleão diante de si. O bicho estava enclausurado num recipiente de vidro sobre a mesa do médico.